17 dezembro, 2004

O artigo de resposta que o Expresso não publicou ou "Ensaio sobre a ignorância da Psicologia"

Entendeu o “Expresso”, na sua edição de 28 de Agosto de 2004, publicar um artigo da autoria do médico dermatologista Francisco Manuel Ribeiro de Miranda, com o pomposo título “Ensaio sobre a Psicologia”. O artigo em questão é a expressão de uma forte opinião sobre a Psicologia. Infelizmente o problema não está na opinião forte, mas na ausência de argumentos plausíveis. Aquilo de que acusa a Psicologia está precisamente espelhado no artigo que escreve, um conjunto de convicções, ou mesmo preconceitos, que transforma na sua verdade sobre a Psicologia. É por isso um artigo redutor, ignorante e insultuoso. Redutor porque circunscrever a psicologia ao pensamento de Freud e Piaget, é como definir a especialidade do autor, a dermatologia, como uma especialidade que trata verrugas e manda aplicar pomadas. Redutor porque se serve de um conjunto de anedotas avulsas como paradigma da aplicação do saber psicológico.Redutor porque analisa as motivações dos estudantes e profissionais como se de conhecimento provado se tratasse, menosprezando a sua idoneidade e prática profissional. Redutor ainda, porque apresenta a solução para os problemas que reconhece serem complexos pela criação de um único instituto de investigação. Que outras áreas do saber poderiam resolver os seus problemas da mesma maneira, com a criação do Instituto Único de Investigação? Que fácil maneira de resolver os males que afectam as diferentes áreas do saber! É tambem ignorante sobre a Psicologia. Desconhece os contributos que marcaram os últimos 50 anos do saber psicológico. A Psicologia, reconhecidamente uma jovem ciência, tem-se consolidado por aturada investigação e trabalho de aplicação, consubstanciada em publicações científicas de elevada exigência, em que o sistema de “peer-review” selecciona os trabalhos com maior rigor científico. Uma passagem pela secção de revistas de uma boa biblioteca de Psicologia serviria para elucidar semelhante facto. Mas poderia ainda visitar o site da maior organização mundial de psicólogos, a American Psychological Association, ou de reputadas universidades internacionais com cursos de Psicologia. No caso particular de Portugal poderia consultar a avaliação realizada aos diferentes cursos pelo Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior, ou ainda a avaliação dos diversos centros de investigação de Psicologia, realizado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Ficaria concerteza com uma actualizada visão da Psicologia, seu impacto, discussões e problemas. O artigo é insultuoso pelas múltiplas referências menorizantes como “Com a mente definhada por teorias para as quais não têm capacidade intelectual no sentido da sua relativização…”. Não será a existência de múltiplas teorias uma condição que precisamente nos alerta para a necessidade da sua relativização? Porque é que cabe exclusivamente aos psicólogos essa incapacidade intelectual?
Segundo o Dr. Francisco Ribeiro de Miranda seriam os psicólogos responsáveis pelo clima educacional na família com a respectiva produção de jovens irresponsáveis, por diversas experiências pedagógicas mal-sucedidas, pela complacência que observa no tratamento dos presos, imprimindo “na sociedade uma dicotomia perversa: quem trabalha é um prostituto, cujo único direito e dever é pagar impostos; quem nada quer fazer, quem vive de manigâncias, tem direito ao respeito, compreensão e subsídios públicos sem qualquer obrigatoriedade e contrapartida”(sic). As afirmações feitas constituem uma autêntica teoria da conspiração psicológica, que conferem à Psicologia um extraordinário poder de intervenção, responsável pela mudança de valores na sociedade. Por muito que nos pudesse agradar o poder que invoca, creio que devemos ser mais humildes na atribuição dos efeitos da nossa intervenção. Como muitas outras teorias da conspiração esta serve para animar o imaginário, mas é decididamente falsa.
A intervenção psicológica tanto individual como grupal tem acentuado o primado do comportamento, da autonomia e da responsabilidade individual. Nas intervenções clínicas é bem claro o papel transformativo que a pessoa tem da sua condição. A pessoa é um agente activo de mudança de si próprio e da sua condição, no sentido de uma melhor saúde mental. A responsabilidade pessoal é um elemento central do reconhecimento das dificuldades e da sua ultrapassagem por uma acção dirigida, confrontada com objectivos e corrigida em função dos resultados. Além disso tem sido crescente o interesse e a preocupação com a eficácia das intervenções disponíveis, demonstrado pelos ensaios clínicos de grande dimensão e rigor destinados a comprovar a eficácia das intervenções psicológicas, comparadas ou em conjunção com intervenções farmacológicas (como , por ex., no caso da depressão e dos distúrbios ansiosos).
Levanta ainda o artigo a questão da desconfiança dos psicólogos face à preparação psicológica dos médicos, que adviria da preocupação humanista que estes têm face ao doente. Confunde formação técnica em psicologia com o humanismo que deve estar presente em todas as profissões que se ocupam do humano na sua dimensão de relação com o outro. A questão não é da psicologia face à medicina, nem nunca será essa a questão. Há muito que é reconhecida a necessidade de uma intervenção interdisciplinar, num modelo de abordagem biopsicossocial que, apesar de muito falado, ainda apresenta dificuldades na sua aplicação por limitações, muitas vezes de carácter económico. A prová-lo estão as diversas colaborações entre a medicina e a psicologia, tanto a nível da intervenção como da investigação, e que diversos frutos têm dado tanto em Portugal como no estrangeiro.
Por todas as razões apontadas, recomendo aos leitores do “Expresso” com interesse nos assuntos da Psicologia, que se refiram às publicações e intervenções dos profissionais da especialidade, assim como concerteza consultam outros especialistas (advogados, médicos, arquitectos, engenheiros) quanto sentem necessidade de resolução de assuntos pessoais ou curiosidade sobre as matérias.
Quanto à organização profissional da classe pode o Dr. Francisco Ribeiro de Miranda estar descansado. O processo de constituição da Ordem dos Psicólogos encontra-se em fase avançada na Assembleia da República, e aguardamos a publicação dos Estatutos que conferirão o direito à existência da Ordem dos Psicólogos. E pode estar certo de que defenderemos tão intransigentemente as boas práticas da Psicologia como actuaremos em conformidade com os prevaricadores das mesmas.
Por fim, desejaria que os ensaios sobre a Psicologia reflectissem uma argumentação válida que só pode ser proporcionada por um conhecimento do assunto que transcende a mera opinião fundada em preconceito. O sapateiro toca rabecão, é bem verdade, mas a qualidade da música não deixa de ser fraca.

Telmo Mourinho Baptista - Presidente da Associação Pró-Ordem dos Psicólogos. Professor Universitário

1 comentário:

Susana disse...

Obrigada :)